Archive for the ‘Grandes bateristas’ Category

Aaron Spears e as notas aleatórias

novembro 12, 2008

“Aleatória” talvez não seja o termo mais exato para caracterizar a rajada de notas que esse jovem americano costuma exibir em suas performances. Mas que às vezes essas rajadas soam dessa forma, isto sim. Meu irmão soltou um comentário pertinente ao assistir à apresentação de Aaron Spears no DVD do Modern Drum Festival 2006, comentário que sintetiza um pouco a peculiaridade de Aaron: “Esse cara parece um louco tocando”, disse.

Mas de louco o cara não tem absolutamente nada, a não ser que passemos agora a chamar de loucura a inventividade, a criatividade e o descontentamento com a mesmice. Aaron é o nome que escolhi dentre uma série de outros grandes instrumentistas surgidos nos E.U.A e com perfis timbrísticos e técnicos semelhantes (poderia citar também Ronald Bruner Jr. e Ted Campbell).

Sua performance soa ao mesmo tempo tecnicamente elevada e artisticamemte relevante. Suas rajadas de notas poluem, mas são administradas com comedimento ao longo do som. Dessa forma parecem ilhas de rudimentos, pontos tensivos onde o músico aproveita para descarregar energias acumuladas ao longo da condução do groove.

No mais, seu groove (como o da maioria desses “novos” grandes bateristas) soa redondo, bem estruturado e contido. O principal diferencial de Aaron é justamente o comedimento.  Seus solos não são tão intensos em número de notas como o dos outros que citei acima. Além disso, ele apresenta uma predileção por viradas sincopadas, e é esse elemento que dá a impressão de aleatoriedade. Enfim, vejam.

Ramiro Musotto e seus desenhos

novembro 12, 2008

O percussionista, compositor e produtor musical argentino Ramiro Musotto não é um artista plástico, mas trabalha minuciosamente com desenhos. Desenhos rítmicos. Desenho rítmico é o termo aqui escolhido para designar padrões de batidas que preenchem o groove de uma forma característica e clara.

A rigor, todos os bateristas trabalham desenhando grooves, pois é só com a reiteração de padõres que se estabelece o fundo de pulsação necessário para reger uma banda. Mas há artistas que fazem isso com mais esmero, mais capricho e obtêm um resultado cristalino e perfeito.

Exemplo contrário do que estou descrevendo seriam os jazzistas mais virtuosos, que a todo momento procuram burlar os padrões e nunca se repetir, transformando a pulsação rítmica em mero roteiro a ser seguido com quase total liberdade de atuação. Daí surgem aqueles solos com digressões rítmicas muito complexas, que ferem a continuidade natural dos grooves.

Ramiro Musotto prefere o artesanato do groove, o desenho amiudado das batidas quase lineares. Nenhuma pretensão de virtuosidade, apenas o passe perfeito para o gol do músico que o acompanha. Há muita beleza nisso, há sensibilidade e bom gosto

Não é à toa que Musotto acompanha, no vídeo abaixo, um dos maiores compositores populares do Brasil, Lenine. Trata-se de um concerto de música popular, de canção, modalidade musical na qual os valores musicais individuais dão lugar ao projeto entoativo do compositor, a suas propostas de junção de letra e melodia. Nesse sentido, Musotto é um autêntito músico-artista, nesse caso, acompanhando outro. Vale a pena acompanhar.

Sim, elas sabem tocar, definitivamente

novembro 12, 2008

Fechando esse pequeno especial sobre mulheres bateristas, apresento a italiana Alessia Mattalia, outra musicista muito respeitável. Creio que apresentando essa tríade (Vera Figueiredo, Hilary Jones e Alessia Mattalia) eu consiga desbancar qualquer teoria machista sobre bateria.

O surgimento de bateristas profissionais mulheres não acompanha nem de longe o de homens, mas fique claro que isso se deve a qualquer motivo menos à incompatibildade física com o instrumento. Outra pseudo-teoria difundida a respeito disso é que mulheres têm menor capacidade motora, que sua coordenação é falha, etc. Outro mito, ou o que são então esses três exemplos que citei, aberrações?

A todas as adolescentes e mulheres que sentem vontade de tocar bateria e por algum motivo acham que não cairia bem, que bateria é coisa de homem, aconselho: arregacem as mangas e sentem a mão nos tambores!

Segue a excelente Alessia Mattalia.

Sim, elas também sabem tocar, e muito!

novembro 12, 2008

Na esteira do comentário anterior, segue mais uma baterista de tirar o chapéu, a americana Hilary Jones. Ao contrário da brazuca Vera Figueiredo, Hilary Jones segue uma linha mais virtuosa, com mais técnica e menos energia. Porém, a sobriedade e precisão de suas notas descem redondamente, limpas como as peles porosas de seu kit.

Hilary é uma prova viva e atuante da capacidade feminina de tocar formidavelmente bateria. Não, ela não precisa fazer força.

Eis o vídeo. Não se enganem, depois do começo simplório segue uma sequência de especiais executada com exímio domínio técnico e bom gosto.

Sim, elas também sabem tocar

novembro 12, 2008

Acatando à sugestão surgida na visita que fiz ao Bom Jesus/Ielusc para falar sobre bateria, destaco alguns nomes femininos que fazem a diferença no meio baterístico. Ver um baterista executando ritmos intensos e rápidos pode sugerir a necessidade de força, fato que aproxima automaticamente o instrumento à figura do homem. Mas isso é bobagem, puro mito.

É claro que se despende mais energia tocando bateria do que violão ou baixo, por exemplo, mas a força necessária para golpear os tambores não chega a justificar uma supremacia masculina no instrumento – que realmente existe. Acho que o que faz surgirem muito mais bateristas homens do que mulheres é um fenômeno cultural sem nenhum nexo com o biotipo masculino ou feminino.

Prova disso é Vera Figueiredo, mais importante baterista do Brasil e reconhecida também no exterior. Vera já levou sua pegada intensa e nada delicada aos auditórios de vários lugares do mundo, participando de festivais de bateria e percussão. Atualmente pode ser assistida todos os sábados no programa “Altas Horas”, da Rede Globo.

O paradigma do rock

novembro 12, 2008

Nos círculos roqueiros, John Bonham é, disparadamente, o nome mais citado quando o assunto é bateria. Ele é quase uma unanimidade em matéria de importância para a história do instrumento. Seus solos longos e vigorosos no meio dos concertos do Led Zepellin colocavam a bateria no centro das atenções, como uma parte importantíssima do espetáculo. Poucos bateristas têm talento e estrela suficientes para alcançar tal feito. Só isso já renderia muitas reverências, mas há mais.

Trinta anos depois de suas performaces mais marcantes é fácil dizer que Bonham não apresentava exímio domínio técnico nem poderia ser considerado um instrumentista virtuoso. Ao primeiro contato com bateristas extremamente técnicos (Vinnie Colauita, Dave Weckl, Billy Cobham etc) fica a impressão de que Bonham não merece a popularidade que carrega, porém só sustenta uma ideia dessas quem aprecia a bateria (e a música em geral) como competição, não como arte.

Mesmo uma apreciação fria e técnica de seus solos revelaria excelente domínio do instrumento, velocidade acima do comum e utilizada com bom gosto e desenhos de viradas muito bem construídos (na maioria das vezes utilizando frases lineares). Mas o ponto forte de suas performances, aquilo que só Bonham legou a toda uma geração futura de bateristas – que inclui Dave Grohl (Nirvana), Mike Bordin (Faith No More) e muitos outros – consiste no peso das notas, na pegada, na energia que sai dos punhos, atravessa baquetas e peles e chega, arrebatadoramente, aos ouvidos da plateia.

Ver e ouvir o baterista do Led Zepellin tocando é como ser transportado para os rituais primitivos em que a percussão tinha o poder e a incumbência de criar o clima transcendental no ambiente. Seu som se assemelha aos tambores do candomblé evocando a presença de entidades.

Ou seja, a importância de Bonham está no fato de ele cumprir, a um só tempo, a função de divisor de águas (pois funda uma nova forma de tocar, uma nova intenção) e de rica fonte de estímulos aos sentidos (pois é difícil não se enlevar pelos seus grooves tribais). E isso só um instrumentista-artista grandioso é capaz de fazer.

Abaixo um breve vídeo de um solo.

Talento e idade

novembro 6, 2008

Algum tempo atrás, um menino de doze anos assombrou muitos marmanjos com um impressionante solo de bateria que rodou o mundo pelo YouTube. Ouvi profissionais e amadores, interessados e curiosos, todos se referirem ao tal garoto como um verdadeiro prodígio do instrumento. E de fato o que Tony Royster Jr. apresenta ao público já aos doze anos muitos profissionais não conseguiriam tocar nem se tivessem a vida inteira para estudar.

Tony conseguiu, em tempo recorde (nunca vi um mais jovem ou da mesma idade tocar tanto), fazer aquilo que todo o instrumentista busca: assimilar e naturalizar as técnicas e rudimentos disponíveis e aplicá-los com consciência na hora da performance, formando uma continuidade sonora que não permite mais ao ouvinte identificar separadamente os rudimentos. Em palavras mais simples, ele trasnforma a pura técnica em som, em música. Enfim, ele “toca”. Por que ele conseguiu isso tão cedo enquanto outros nadam boa parte da vida e chegam a lugar nenhum? Não arrisco palpite. Pergunte à natureza, aos espíritos, ou à família do garoto, que deve ter culpa nisso, incentivando-o e dando condições para que ele estudasse desde os três anos.

A primeira questão que vem à cabeça quando se tem contato com tal precocidade é: se ele já toca assim, o que vai aprontar quando for mais velho? Eis a minha resposta: não vai aprontar nada de muito diferente.

Maldade minha? Deixem-me explicar. O caminho escolhido por Tony (na linha de Dennis Chambers, Akira Jimbo, Billy Cobhan, etc) é o da intensidade, da velocidade, das notas-por-segundo.  E, como já comentei num post antigo, esse caminho tem limites que coincidem com os limites físicos humanos, tanto de execução como de assimilação.

Ok, mas há mérito em alargar os limites físicos humanos, em bater recordes, em se superar, dirão. Sim, até pode haver, mas pra mim está longe de ser esse o objetivo de um instrumentista-artista. Com o termo instrumentista-artista quero designar aqueles que se utilizam do instrumento como forma de expressão, como canal de jorro sensorial e emocional. E acho que Tony, nesse quesito, não é nada impressionante.

Mas tirem suas próprias conclusões. Abaixo o referido vídeo do infante Tony Royster Jr. e, logo depois, ele aos 22 anos.

A polêmica de Seattle

outubro 24, 2008

Pearl Jam é seguramente uma das dez maiores bandas da atualidade. A cada turnê o quinteto de Seattle arrasta multidões de fãs aos shows, e quem comparece costuma sair do espetáculo extasiado, mesmo sem ter sido metralhado pela pirotecnia que outras bandas gigantes como U2 e Rolling Stones costumam oferecer. O negócio do Pearl Jam é subir no palco e tocar – sem frescura. Os fãs não reclamam.

Mas já ouvi muitas reclamações sobre o Pearl Jam quando o antigo baterista, Dave Abruzzese, saiu da banda e, depois de algumas experiências com nomes de pouco prestígio, Matt Cameron, ex-Soundgarden, assumiu as baquetas definitivamente. O primeiro disco que ele gravou com a banda foi um ao vivo, o Live On Two Legs, lançado em 1998. Lembro que na época a chiadeira foi total entre os fãs de Abruzzese. Diziam que Matt deixou o som da banda mais quadrado, que o quinteto perdera seu gingado característico dos primeiros discos, gingado que a diferenciava das outras bandas grunge em ascendência.

Também acho que o Pearl Jam não é o mesmo com o Matt: agora acho que está melhor. Eu já me deliciava com a malemolência contagiante que Matt aplicava nos discos do Soundgarden. Pra quem aprecia boas execuções de bateria, o disco Badmotorfinger, terceiro do Soundgarden, de 1991, apresenta um Matt Cameron a todo vapor, em performances intensas e precisas (como é sua característica).

Creio que Matt seja o melhor baterista de rock que eu já ouvi. Seu domínio do instrumento é tal que ele encaixaria em qualquer banda. No Led Zeppelin ou no Rush não faria feio. No mais, sempre achei as execuções do Abruzzese exageradamente poluídas. Ele tem uma mania de usar um pivô no bumbo em horas inapropriadas. Fora que os pratos sofrem nas suas mãos: ele não dá sossego aos ouvidos (experimentem ouvir o acústico pirata da banda e entenderão o que quero dizer com exagero de pratos).

Seguem dois vídeos do Pearl Jam da mesma música: Even Flow. Uma com Abruzesse às baquetas e outra com Matt Cameron. Tirem as conclusões. O detalhe fica por conta da improvável virada de preparação que Matt executa depois do solo. Ele sacaneia com o tempo e quase passa uma rasteira na banda. Mas tudo dá certo no final. Eddie Vedder deve ter sentido um alívio quando teve certeza que entrou no tempo certo.  

Ok, retornarei a Flaubert

outubro 23, 2008

Fiquei decepcionado com minha capacidade descritiva. A descrição da tabla, no post sobre o Trilok Gurtu, confundiu mais que elucidou. Uma leitora disse primeiro: “Putz, que descrição bizarra desse instrumento, hein?”. Respondi: “É que o instrumento é complicadinho mesmo, mas veja o vídeo, você vai ligar a descrição à coisa”. Ela viu o vídeo e veio com essa: “Ah, claro que eu conheço esse intrumento, dos filmes…”. Ou seja, parece que eu tirei o instrumento descrito da minha imaginação, porque o que ela viu não se ligou de nenhuma forma aos 784 caracteres que eu dediquei à representação da tabla.

Então aí vai uma foto bem clara pra resolver o problema. (Atentem para os cordões ao redor – parece que são de pele de búfalo – e para os pauzinhos entrelaçados nos cordões – movendo eles pra cima e pra baixo muda-se a afinação da pele . E o principal, o enigmático círculo negro no meio das peles: ali está o segredo do som.)

4 em 1

outubro 23, 2008

 Um dos maiores desafios para os bateristas iniciantes (e até para muitos experientes) é alcançar o nível de independência dos membros que a música latina (mais precisamente a caribenha) exige. Salsa, mambo, rumba, todos esses ritmos, se tocados por quem não está habituado com a gramática particular do estilo, soam quadrados, mancos, vacilantes.

Muito músico de boteco enche a boca pra falar que a música brasileira, além de rica, é complexa, tem um gingado próprio e não soa a mesma coisa na mão de gringo. A imagem do alemão desengonçado tentando sambar (e a malandragem ao redor rindo do cara) cabe perfeitamente pra ilustrar esse ufanismo rítmico ao redor do samba.

É claro que o samba tem sua complexidade. O responsável por isso, todos sabem, é baiano de Juazeiro e se chama João Gilberto. Foi tocando obsessivamente seu violão que ele alcançou, já na década de sessenta, o limite da complexidade rítmica do samba. A síncopa, a capacidade de burlar as cabeças do tempo e perambular pelos compassos como um bêbado consciente, é metade do som de João. A outra metade fica por conta das construções harmônicas, que também não têm nada de simples.

Mas o samba nem é o ritmo brasileiro mais elaborado. O maracatu e suas derivações, oriundos de Pernambuco, impõem mais desafios aos ouvidos não iniciados do que o samba. Mas nenhum desses ritmos, creio, são mais escorregadios que o que costuma sair das mãos dos caribenhos. E pra tocá-los o músico tem que alcançar, na marra, a independência dos quatro membros.

A maioria das pessoas pensa que “todos” os bateristas precisam de coordenação extraordinária para controlar braços e pernas em movimentos distintos, mas isso não é bem verdade. Existe uma espécie de inércia motora que opera no cérebro quando começamos a aprender a tocar. Essa inércia faz com que um membro tenda a mimetizar o movimento do outro. Ocorre que pra tocar bateria (até pra tocar bem bateria, diga-se) não é necessário romper drasticamente com essa inércia.

Muitos ritmos são baseados em movimentos agrupados de mãos e pés, o que facilita a execução. Os ritmos latinos se diferenciam justamente nesse ponto: eles exigem mais labor do cérebro, fazendo com que cada membro execute padrões diferentes. O resultado disso é um nó na cabeça de quem começa a aprender e também na de quem ouve.

Abaixo um exemplo disso. Horácio Hernandes, ou “El Negro”, cubano, é um exemplo de extraordinária independência dos membros. Tente entender o que ele está fazendo, não é fácil. Dica: tome como base a clave que ele executa com o pé esquerdo.